Ad Code

Responsive Advertisement

Onde estão guardadas as memórias? (Parte 01)

NUMA CAIXA?
NUMA ESTRELA?
NUMA CABEÇA?
NUMA PALAVRA?
NO CARBONO?
NO FUNDO DO MAR?

Por Jr. Bellé


     "Fisicamente habitamos um espaço, mas sentimentalmente, somos habitados por uma memória", escreveu José Saramago, nos doando a pista inicial nesta busca, feita de letras, atrás das guaridas da lembrança. Pois, de fato, ela existe, mas existe no plural, mesmo cada uma delas sendo, essencialmente, singular. Aquelas que nos pertencem são passíveis de ser acessadas; a maioria de nós pode fazê-lo por meio de um esforço recordativo, de um exercício de lembrança. Elas, as memórias, parecem estar dentro de nossas idéias, parecem ser intracranianas e estar apenas esperando uma oportunidade para recordar. Dessa forma, nosso cérebro se converte no reminiscente supremo. Mas, e se ele não for tudo isso? E se elas não puderem ser monopolizadas sequer por nossas ideias, por nossa encefálica? Não estão também nas fotografias, nos filmes, nos livros? Não são eles, da mesma forma, seus repositórios e talvez até mesmo seus depositários? Não pulsa nas veias as memórias genérica? Onde, afinal, elas estão guardadas?

        "Apesar de as transações neuronais serem realizadas em nosso cérebro, nossa memória é muito mais que um circuito eletrônico. Ela se faz presente em todo o corpo, como é comprovado pelo testemunho de bailarinos e atores, cujo ofício demanda uma memória que envolve o corpo e os sentidos, escapando da localização cerebral. Além disso, também podemos pensar numa memória social, ou seja, que se faz presente nas relações que estabelecemos e pode ser encontrada, por exemplo, por meio de tradições, comemorações, feriados e narrativas", explica o psicanalista Luis Vinícius do Nascimento.

        De acordo com Nascimento, doutorando em Memória Social pela Unirio, nosso aparelho psíquico sequer pode ser considerado um bom repositório de relembranças, um lugar adequado em que elas possam ser guardadas. Muitas vezes, ele atua como "um verdadeiro censor de memórias" que não apenas as edita, mas também as inventa: "Na verdade, isso é muito mais comum do que imaginamos. Não é como um computador, no qual as informações estáticas são acessadas quando desejamos. Elas são vivas e estão em eterna mudança. É claro que algo permanece a cada vez que nos lembramos, ou que nos esquecemos, mas, aos poucos, nossas marcas também se alteram e as recordações são reinventadas".


       Não há como dissociar nossos cérebros de nós mesmos; assim, nos tornamos natural e instintivamente produtores, inventores e reinventores de memórias. Alcançados a esse patamar, nós, humanos, deparamos com um problema intrínseco a elas: sua inexpugnável brevidade, sua fragilidade fatalmente finita, aguardando a extinção pela simples imposição da morte. A fim de tentar tangenciar essas características, malandros que somos, inventamos algo capaz  de alongar a existência de nossas lembranças e, assim, prolongar nossa própria existência: a linguagem.

         "A própria linguagem é portadora de uma memória. Todos nós já nascemos em um mundo que transpira linguagem por todos os poros, e é somente por meio dela que podemos lidar com o mundo que nos envolve. Além disso, a linguagem implica instrumentos que vêm modificando a forma como a expressamos através dos tempos. A invenção da escrita, por exemplo, é uma revolucionária forma de tentar enganar a morte ao perpetuar a marca de nossa presença através do tempo - um processo que teve seu início nas cavernas e que hoje encontramos refletido na computação nas nuvens, o cloud computing, e estou certo de que não vai parar por ai", conclui Nascimento.

(Na próxima parte, a continuação do artigo - O Corpo Fantasmal)

Fonte: Revista Cultura

Postar um comentário

0 Comentários